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sexta-feira, 27 de maio de 2005

Uma bela e feroz antítese de Michael Moore

O MUNDO
Rio, 24 de abril de 2005 Versão impressa
Uma bela e feroz antítese de Michael Moore


Dorrit Harazim
Especial para O GLOBO

BOSTON, Massachusetts. Assim não dá. Enquanto o embate ficou no âmbito das idéias e do debate intelectual — mesmo que pontuado por insultos mútuos e ofensas estridentes — a América de Michael Moore (liberal) e a de Ann Coulter (conservadora) ainda se toleravam. Até porque um parece precisar do outro para medir a própria força. Mas na semana passada a voz mais demolidora da América ultra-republicana usou arma desleal, por invencível: um notável par de pernas que deixam tanto a direita quanto a esquerda dos EUA de queixo caído.

Loura nocauteia cineasta no quesito beleza

Durante a semana inteira Ann Coulter reinou sozinha nas bancas de jornal do país, como tema da capa da revista “Time”. Com sua silhueta longilínea enfiada num pretinho básico, a cachoeira de cabelos louros emoldurando os seios e o par de pernas estrategicamente cruzado e alongado pela lente do fotógrafo, Ann Coulter nocauteou o rival ideológico. Como competir contra um par de pernas daquele, quando você é desaprumado, mais para amorfo, óculos em desequilíbrio permanente num rosto suado? Michael Moore também já tinha sido capa da “Time”, no longínquo tempo (2004) em que seus filmes, livros e idéias efervesciam no cenário político-cultural americano.

Ataque à França é uma das bandeiras de Coulter

Michael e Anne têm em comum serem celebridades, se alternarem na lista dos autores mais vendidos e embolsarem milhões de dólares com a persona ideológica que cada um optou por incorporar. Jamais mediram as forças num debate direto — possivelmente para não correr o risco de terem de dividir as atenções. Mas enquanto Michael Moore concentra o seu agit-prop fazendo documentários de denúncia monolítica irreverente, a louraça de 43 anos intoxica mentes com sua presença na televisão e uma coluna acerba em jornais americanos. Apenas um exemplo do estilo Coulter de incendiar: “Precisamos atacar a França”, escreveu em março de 2002 na publicação conservadora “American Enterprise”. E explica por que: “Tendo se exaurido no feroz combate contra o nazismo, na última guerra, a França de hoje não consegue mais arregimentar forças para combater o terrorismo. Ela tem alimentado, financiado e protegido terroristas fundamentalistas islâmicos há décadas”.

“Ann tem a língua mais rápida do Leste”, elogia o reverendo Jerry Falwell, com quem comunga parte do ideário conservador. Mas apenas parte, visto que o gatilho verbal de Ann Coulter nem sempre poupa o arquiteto maior da América conservadora, o próprio presidente dos EUA, George W. Bush. Aborrecida com a forma que considera “molenga”e “indecisa” com que a Casa Branca está encaminhando a revisão do direito ao aborto, a colunista decretou, meses atrás, que “talvez Bush seja mesmo um cretino”.

O que mais enfurece a América liberal e democrata é o domínio com que Ann Coulter maneja o seu tempo de exposição na televisão. Cada vez que é chamada a opinar na CNN ou Fox News, leva a audiência a estados de exaltação, exultação ou ira absolutos — ou seja, sucesso total segundo o estado das artes do debate intelectual transformado em reality show. Dado que na discussão política, pela TV, se privilegia opiniões que causem o máximo de choque com um mínimo de palavras, Ann Coulter é nome de grife.

Ao vivo e a cores também. Por U$ 25 mil dólares a palestra (ou U$ 50 mil, depende) ela causa um mesmo frisson em platéias hostis ou amigas. Algo como a pós-feminista Camille Paglia nos anos 90. No circuito acadêmico/universitário, majoritariamente liberal, sempre há alguém na platéia decidido a pulverizar as frases de efeito e simplificações abrasivas da palestrante. Em geral, acaba sendo atropelado pelo trator Coulter. Seis meses atrás, exasperados, dois estudantes da Universidade do Arizona a alvejaram com tortas de creme de chantilly. Desde então, ela se apresenta a bordo de dois guarda-costas e uma unidade policial de prontidão.

Foi assim em janeiro deste ano, no Boston College. Foi assim em março, quando se apresentou no Auditório Cabot da Universidade Tufts, em Massachusetts, estado natal de John Kerry e do liberalismo que ela pinça como inimigo maior do país. Basta listar alguns títulos de seus livros, nenhum ainda publicado no Brasil, para se ter a dimensão da cruzada de Ann Coulter: “Treason: Liberal Treachery from the Cold War do the War on Terrorism”( “Traição: Perfídia Liberal da Guerra Fria à guerra contra o Terror”), “How to Talk to a Liberal , If You Must” (“Como Falar com um Liberal, se necessário”), “Slander: Liberal Lies About the American Right”(“Calúnia: Mentiras dos Liberais sobre a Direita Americana”).

Segundo a revista “Time”, em fevereiro último, por ocasião de uma palestra no Atrium Hall do Edifício Ronald Reagan, em Washington, um dos presentes fez o que cristãos-novos e macacos velhos gostariam de ousar: na sessão de perguntas e respostas que se seguiu, convidou-a para sair. Só que Ann Coulter, como mulher, seduz tanto quanto intimida. Solteira, desfez três noivados até agora. Educada em colégios de elite e formada em Direito pela Universidade de Michigan, ela veste o figurino da mulher que despreza mulher. Aliás, difícil ser mais politicamente incorreta: Ann fuma, bebe, usa casaco de pele (longo, ainda por cima, cobrindo uma micro-saia de couro preto), e desanca minorias de todos os tipos.

“Ela é a Paris Hilton da politica pós-moderna”, alfineta James Walcott, um de seus críticos mais ferozes, em artigo para a “Vanity Fair”. “Reacionária”, “neo-imperialista”, “pantera televisiva”, “embusteira”, “fraude” são apenas alguns dos epítetos que a acompanham, variações de uma dúvida central em torno de Ann Coulter: sua verborragia é oca ou baseada em convicção? Suas argumentações têm algum peso intelectual? O fervor ideológico é sincero ou ferramenta de marketing? A revista “Time”, ao colocá-la na capa, quis fazer média com o eleitorado conservador?

O autor da reportagem, John Cloud, se defende. “A meu ver Ann Coulter condensa a forma como a política foi discutida neste país ao longo da campanha eleitoral do ano passado. Foi um mata-a-mata dos dois lados. O lado dela venceu de forma inequívoca e me pareceu oportuno mostrar quem é a força por trás da forma como nosso debate político vem sendo conduzido. Sob vários aspectos, Ann Coulter é a pessoa que está dando o tom desse diálogo”, declarou Cloud em entrevista pela Internet.

A América já conheceu tempos melhores.(sic)

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